A internacionalização do mundo
O Globo-10/10/2000- Cristovam Buarque
Fui questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia, durante um debate, nos Estados Unidos. O jovem introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Foi a primeira vez que um debatedor determinou a ótica humanista como o ponto de partida para uma resposta minha. De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia.
Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso. Respondi que, como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, podia imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a humanidade.
Se a Amazônia, sob uma ótica humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia é para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço. Os ricos do mundo, no direito de queimar esse imenso patrimônio da humanidade.
Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país.
Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.
Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar que esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, possa ser manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Não faz muito, um milionário japonês decidiu enterrar com ele um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.
Durante o encontro em que recebi a pergunta, as Nações Unidas reuniam o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu disse que Nova York, como sede das Nações Unidas, deveria ser internacionalizada.
Pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda a humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua história do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro. Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.
Nos seus debates, os atuais candidatos à presidência dos EUA têm defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola.
Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver.
Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa.
(*) Cristovam Buarque, 58, doutor em economia e professor do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília), foi governador do Distrito Federal pelo PT (1995-98). Autor, entre outras obras, de "A Segunda Abolição" (editora Paz e Terra). |
Nota: Recebemos um email questionando sobre a autenticidade do texto, pois alguns "web sites" diziam não ser Cristovam Buarque o seu autor. Entramos em contato com Cristovam que confirmou, em 10/05/2002, ser o texto de sua autoria: "Prezado Paulo O artigo é meu e foi publicado no Globo e no Correio Brasiliense, no final de 2000. O fato em si ocorreu em Setembro de 2000 em Nova York, durante o State of The World Forum. Grande abraço Cristovam" e mais, em 28 de maio de 2002: Prezados (as) amigos (as),
No mais, fico contente que vocês tenham lido. E para aqueles que ainda não leram aproveito a oportunidade para mandar. Grande abraço BIBLIOGRAFIA: INTERNET, http://www.almacarioca.com.br/cro38.htm |
This was the first time anyone had established the humanist viewpoint as the starting point for my response. In fact, as a Brazilian I would have responded simply against internationalization of the Amazon Region. Even if our governments have not given the attention that this treasure deserves, it is ours. I responded that, as a humanist, realizing the risk of environmental destruction that threatens the Amazon Region, I could imagine its internationalization, just as for everything else that is important to humanity.
If the Amazon Region, from a humanist΄s point of view, has to be internationalized, then we should internationalize the oil reserves of the entire the world as well. Oil is just as important to the well being of humanity as the Amazon Region for our future. Nevertheless, the owners of oil reserves feel it is in their right to increase or decrease oil production and to raise or lower the price. The rich of the world, feel they have the right to burn this valuable possession of humanity. Similarly, the financial capital of the wealthy nations should be internationalized. If the Amazon Region is a natural reserve for every human being, then it could not be burned down by the decision of a landowner or a country. To burn down the Amazon Region is so tragic, as the unemployment provoked by the arbitrary decisions of world wide speculators. We cannot permit that the world΄s financial reserves serve to burn down entire nations according to the whims of speculacion.
Before the (internationalization of the) Amazon Region, I would like to see the internationalization of all the world΄s great museums. The Lourve cannot belong only to France. Each museum in the world is a guardian for the most beautiful works produced by the human genius. It cannot be permitted that these cultural possessions, as the natural posession of the Amazon Region, can be manipulated or be destroyed according to the whims of an owner or a country. Recently, a Japanese millionaire decided to have a painting of a grand master burried with him in the grave. This painting should have been internationalized.
At the time of the meeting, in which this question came up, the United Nations convened the Forum of the Millennium and the presidents of several countries had difficulties in attending due to barriers (they faced) at the border. Therefore, I contend that New York, as the base of the United Nations, should be internationalized. At least Manhattan should belong to all of humanity. Similarly Paris, Venice, Rome, London, Rio de Janeiro, Brazilia, Recife, every city with its own beauty, its own history should belong to the whole world.
If the United States wants to internationalize the Amazon Region, due to the risk of leaving it in Brazilian hands, then we should internationalize all the nuclear stockpiles of the United States. Particularly since they have already shown that they are capable of using these weapons, causing a destruction thousands of times greater than the sad fires taken place in the Brazilian forests.
During their debates, the current U.S. presidential candidates have defended the idea of internationalizing the world forest reserves in exchange for the debt. We could begin to use this debt to guarantee the right of every child in the world to attend school. We could internationalize the children treating all of them, regardless of their birthplace, as a posession which deserves the care and attention of the entire world. Even more so than the Amazon Region. When the world leaders attend to the world΄s poor children as possessions of Humanity, they will no longer permit that these children work when they should be studying, that they die when they should be living.
As a humanist I accept to defend the internationalization of the world. So long as the world treats me as a Brazilian, I will fight so that our Amazon Region will be ours. Only ours.”
Text by Cristovam Buarque (Professor of Brasilia University, ex-governor of Brasilia, D.F. and Brazilian Senator). As reported in the Brazilian Daily O Globo on the 23rd of October, 2000.